terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Inundações: ecologia política do caos hídrico


Por Gonzalo Gutiérrez Nicola*

As recentes enchentes nas bacias dos rios Paraná e Uruguai tornaram-se famosas por deixarem milhares de famílias desabrigadas. Mas elas também mostraram as consequências de uma degradação ambiental sistemática, a incapacidade dos governos em coordenarem suas políticas ambientais e hídricas, e o avanço de um modelo de desenvolvimento meramente convencional.

Várias razões foram apresentadas para explicar as inundações ocorridas no final de 2015 e início de 2016. Muitos atribuíram ao conhecido fenômeno climático El Niño, como sendo o principal responsável pelas fortes chuvas ocorridas nos leitos dos rios, mas outras vozes apontaram para a falta de planejamento na urbanização de cidades costeiras, as poucas obras de contenção para evitar as cheias, a ausência de sistemas de alerta e planos de evacuação e os efeitos das barragens.

Outro fator identificado como responsável são as formas de cultivo promovidas nos últimos anos na região, particularmente a monocultura de soja, o que causou um forte desmatamento (como sustenta Dario Aranda [1]). De fato, ao longo de um século, tem se intensificado nos quatro países da bacia do Paraná e Uruguai a monocultura de soja em larga escala para exportação. Impactos sociais e ambientais deste modelo foram devidamente estudados e relatados em várias ocasiões (por exemplo, de CLAES em Lapitz, Evia & Gudynas [2]).

Por sua vez, um fator que também foi mencionado, embora com menos ênfase do que deveria ser, é a perda de zonas úmidas e pântanos nos países da região (ver, por exemplo, a posição dos Guardiões do Ibera, Argentina [3]). As áreas molhadas se localizam em terras baixas e atuam como uma esponja natural, podendo armazenar grandes quantidades de água. A perda dessas áreas com fins produtivos – principalmente para cultivo de arroz e pomares – tem provocado mudanças no regime hidrológico, e as águas atingem novos locais, inundando-os.

O aparecimento destas grandes enchentes e milhares de desabrigados evidencia a gravidade do problema. Mas mostra também que há muitos fatores envolvidos, e torna-se muito difícil dizer qual o mais importante. Portanto, estamos diante de um quadro caótico no tratamento e gestão dos sistemas de água na região. Em algumas regiões choveu demais, em outros lugares desapareceram os alagados e bosques que amortecem o crescimento dos cursos de água, e em outras áreas, as camadas mais pobres invadem as margens do rio. Além disso, várias tubulações, sistemas de drenagem, desmatamento e outras intervenções nos ecossistemas são permitidas. Sistemas produtivos baseados em monoculturas têm causado sérios impactos sobre os ecossistemas, alterando a dinâmica da água em nível regional. Todos esses componentes interagem e se misturam em diferentes graus.

Perspectivas convencionais têm muita dificuldade em lidar com estes fenômenos que envolvem muitos fatores ambientais. É que as atitudes tradicionais costumam pensar em algumas ligações diretas entre umas poucas causas e seus efeitos. Nestes casos, no entanto, múltiplos processos interagem, não há necessariamente simples ligações de causa e efeito, e todos eles se espalham por enormes áreas geográficas. Por outro lado, a visão simplista coloca toda a sua fé em algumas respostas, esquecendo-se que muitas vezes as ações paliativas podem contribuir para agravar o problema. Por exemplo, uma solução localmente (tal como a construção de barragens para conter as inundações), poderia agravar o problema em escala regional. Finalmente, não se pode esquecer que os tempos políticos são muito diferentes dos tempos dos ecossistemas.

Alguns desses fatores são globais, como o El Niño, mas a maioria dos outros são de âmbito nacional ou mesmo local – como tolerar o desmatamento ou aterramentos de zonas úmidas. Os governos dos territórios afetados por estas enchentes acusaram o El Niño e até mesmo as mudanças climáticas globais para desviar a atenção de suas responsabilidades nacionais e locais.

Além do mais, como estas inundações se manifestam como um drama regional, afetando quatro países, não existem bons mecanismos de coordenação entre os Estados nacionais para lidarem com a gestão da água e dos ambientes contíguos. Não foi possível alcançar no seio do Mercosul esforços efetivos de gestão de bacias.

Na própria cobertura na imprensa convencional é sintomático o olhar fragmentado que se tem sobre o tema, particularmente na Argentina e Uruguai: se atribui à inundação um fenômeno que “vem de fora” e sobre o qual pouco se pode fazer além de tomar medidas para minimizar seus impactos. As referências a outros países não passam da contagem de desabrigados e algumas menções pontuais, como a evacuação de leões de um zoológico em uma cidade uruguaia. Não se dimensiona nem se responsabiliza a forma utilitarista da produção sobre o meio ambiente, promovida por todos os países que sobrecarregam uma bacia hidrográfica.

Ao contrário da visão convencional, deve ser entendido que problemas como estas cheias, certamente podem ter sido agravados pela mudança global (alterações climáticas), mas acima de tudo resultam de decisões tomadas em cada país. Como os efeitos, no entanto, se tornam regionais, é necessário transcender as lógicas nacionais, para pensar e conceber soluções entre os quatro países envolvidos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). Seus conteúdos não podem ser apenas as respostas na emergência, tais como planos para lidar com milhares de desabrigados, mas também organizar planos de ação para prevenir a ocorrência dessas enchentes e, se acontecerem, para evitar que afetem milhares de famílias.

No centro desta discussão deverão estar as implicações dos planos de desenvolvimento baseados na exploração extrativista primária, e entre elas, em monoculturas aplicadas em toda a região. Além disso, a falta de planejamento do uso do solo e na urbanização. Os responsáveis aqui são os governos nacionais e municipais.

É necessário criar mecanismos para a participação cidadã na discussão e reforçar a ligação entre as comunidades das bacias hidrográficas. Aqui, novamente, o enfoque fragmentado promovido pelos governos e os meios de comunicação estabeleceu um nacionalismo estreito que superestima as diferenças entre as comunidades. Na verdade, elas têm muito em comum do ponto de vista cultural e histórico e obteriam bem mais benefícios no trabalho conjunto, ao invés do confronto. A perspectiva dos biomas é uma alternativa a considerar, na linha de desenvolver estratégias de complementaridade ecológica e produtiva entre os países.

Os governos da região têm minimizado – quando não ridicularizado – as advertências das organizações ambientalistas e acadêmicas; da mesma forma que fizeram com os olhares de comunidades locais e indígenas. Mas a discussão e pesquisa sobre as enchentes como fenômenos sócio-ambientais deve ser uma prioridade em um marco bem amplo, em que sejam ouvidas todas as vozes e as partes envolvidas.

Na medida em que prevaleçam as visões enviesadas e utilitaristas – sejam promovidas pelos governos progressistas ou de direita – que considerem a natureza como um conjunto de recursos destinados ao consumo humano, continuaremos assistindo, ano após ano, aos efeitos de cada nova inundação sobre as comunidades e o meio ambiente.

Referências

[1] Aranda, Darío. La mano humana tras el agua. Página 12, 29 diciembre 2015 http://goo.gl/y9A50o

[2] Lapitz, R., Evia, G. y Gudynas, E. (2004) Soja y carne en el Mercosur. Comercio, ambiente y desarrollo agropecuario. Editorial Coscoroba, Montevideo. Disponível em: http://agropecuaria.org/sojacarne/index.html

[3] Argentina: Inundaciones, arroceras y forestaciones agravan la situación del incremento de cuerpos de agua en Corrientes. BiodiversidadLA http://goo.gl/qvdFGm

*Gonzalo Gutiérrez Nicola é um pesquisador do Centro Latino Americano de Ecología Social (CLAES). www.ambiental.net


Agencia Latinoamericana de Información

Traduzido por Rafael Tomyama

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