Roteiro sobre o tema "Experiências Internacionais de Organização Partidária", elaborado para o Seminário sobre Organização Partidária, promovido pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, em 27 e 28 de agosto de 2015, Hotel San Raphael, São Paulo
Por Valter Pomar*
1.Agradeço à direção do PT o convite para contribuir neste seminário.
2.Faço parte dos que foram derrotados nas principais votações do recente quinto congresso, tanto nas questões políticas quanto nas questões organizativas.
3.Votei contra a continuidade do PED e a favor do sistema de eleição em congressos. E sou autor, junto com a companheira Iole Ilíada, de um recurso ao Diretório Nacional do PT, questionando a legalidade da decisão adotada quanto a contribuição militante.
4.No mérito, considero um despautério que um Partido como o PT, num momento como este, desvincule o direito de votar da obrigação de contribuir financeiramente. O momento é de construir o autofinanciamento militante!!!
5.Dito isto, passo a tratar do tema para o qual fui convidado: “Experiências Internacionais de Organização Partidária”. Para tal, a organização me concedeu 10 minutos para uma fala inicial e 5 minutos para comentar após as intervenções dos participantes, mais o direito a distribuir um texto de 5 mil caracteres, o que equivale a 1 página do jornal Página 13.
6.Como o assunto não cabe neste tempo nem neste espaço, optei por preparar esta exposição por escrito, que a Sorg se dispôs a imprimir e distribuir aos presentes ao seminário. Além de estar disponível no valterpomar.blogspot.com.br
O que as experiências internacionais têm a nos dizer?
7.Começo afirmando a seguinte ideia: não existem modelos na luta da classe trabalhadora pelo socialismo. A tentativa de copiar as opções (ou o que achamos que foram as opções) adotadas pela classe trabalhadora em outros países e épocas não deu e nunca dará certo.
8.Ou seja: em cada país, em cada época, cada classe trabalhadora terá que construir seu programa, sua estratégia, seus instrumentos organizativos, suas táticas e formas de luta. Portanto, a forma de organizar a luta da classe trabalhadora e as ideias correspondentes são marcadamente históricas, correspondem a um determinado momento da luta de classes em um determinado país.
9.Embora isto seja verdade, a tendência a copiar modelos é fortíssima. Por que isto acontece?
10.Em primeiro lugar, porque o capitalismo, a classe trabalhadora e a luta pelo socialismo são fenômenos internacionais.
11.Em segundo lugar, porque o maior êxito da classe trabalhadora num determinado país ou época estimula seus contemporâneos a “seguir os passos do caminho”.
12.Assim é que houve uma tendência a copiar os franceses (até a derrota da Comuna de Paris), depois uma tendência a copiar os alemães (até a I Guerra Mundial), depois uma tendência a copiar os russos, os chineses, os cubanos etc. Vale destacar que esta tendência é estimulada em certa medida pela classe dominante, através da propaganda negativa que faz acerca de determinadas experiências.
13.Em terceiro lugar, porque é realmente útil estudar as experiências internacionais, desde que fique claro o que buscamos neste estudo. E o que buscamos não são as respostas certas, mas sim as perguntas certas.
14.Dito de outra forma, a experiência internacional não nos responde como organizar a classe trabalhadora brasileira na luta pelo socialismo.
15.Não existe um “supermercado de experiências”, onde a gente possa adquirir a “melhor forma de organização de base”, a “melhor forma de mobilização”, o “melhor tipo de comunicação”, o “melhor tipo de direção” e assim por diante.
16.O que a experiência internacional pode nos ajudar é a elaborar uma lista de “perguntas” que devemos tentar responder, ao analisar a realidade brasileira.
17.Dito de outra forma, o estudo da experiência internacional (que em grande medida consiste no estudo de várias outras experiências nacionais ao longo da história) pode nos ajudar a produzir uma síntese dos grandes temas, das grandes questões, das grandes perguntas. Mas a resposta adequada aos nossos problemas, isto tem que ser produto da análise concreta da situação concreta, para usar uma frase conhecida.
18.O que foi dito até agora poderia ser formulado de outra forma, mais digamos “humorística”, a saber: a experiência internacional pode nos indicar o que fazer para que as coisas terminem mal. Pode nos indicar, dito de outra forma, o que não fazer. Por razões meramente didáticas, é desta forma “humorística”, que eu vou organizar o restante da minha exposição.
O que não fazer?
I. Abrir mão da independência de classe
19.A experiência histórica demonstra: a classe trabalhadora deve construir organizações próprias, para travar a luta econômica, política e ideológica. Sindicatos e outras formas de organização, partidos, escolas e meios de comunicação: ou se constrói, ou se perde a luta.
20.No caso do petismo o déficit mais evidente ao longo destes 35 anos está no terreno da comunicação. Não apenas falta uma política e uma ação de comunicação à altura das necessidades (não temos um jornal diário, por exemplo). Mas também o conteúdo de nossa comunicação é pífio e muitas vezes errado, como eu percebo toda vez que vejo o Kassab, o Levy, o FMI e o Setúbal ganharem destaque positivo na página eletrônica do PT nacional.
21.A ausência de uma política de comunicação afeta a independência de classe, pois ajuda (por omissão) a manter uma grande parte da classe trabalhadora sob domínio da visão de mundo dos capitalistas e dos setores médios.
22.Depois de tantos anos, não se pode atribuir o problema a falta de recursos humanos ou materiais. E depois da exitosa e logo desdenhada experiência do Muda Mais, ficou claro que não se trata tampouco da rejeição aos impressos em favor das novas mídias. Há uma divergência de fundo, acerca da necessidade ou não de uma verdadeira rede de comunicação partidária.
23.E esta divergência, é bom que se diga, se estende ao conjunto da obra: desde 2003, muito pouco foi feito para quebrar o oligopólio da mídia e democratizar a comunicação de massa. Ao revés, a Globo continua tendo tratamento vip.
II. Deixar de construir uma interpretação própria acerca da realidade
24.A experiência histórica também demonstra: a classe trabalhadora precisa construir (e reconstruir, atualizando-a o tempo todo) uma interpretação própria acerca da luta de classes no terreno internacional e nacional, portanto acerca do desenvolvimento capitalista em geral e de cada formação social nacional.
25.É bom dizer que nunca houve nem nunca haverá uma única interpretação, nem haverá “a” interpretação. Mas a busca por construir uma interpretação própria, do ponto de vista da classe trabalhadora, é essencial para o êxito da luta de nossa classe. Trata-se de uma tradução — no plano das ideias — da seguinte noção básica: a classe trabalhadora que produz a riqueza deve, através da sua organização e ação coletiva, tomar em suas mãos a definição de como produzir, como distribuir e como organizar a sociedade.
26.Um dos piores efeitos colaterais da ação combinada da ofensiva neoliberal e da crise do socialismo, nos anos 1980 e 1990, foi exatamente o retrocesso no terreno das ideias.
27.O retrocesso ocorreu antes de mais nada no plano material, com o fechamento de editoras, escolas, jornais, provocando a redução nos recursos humanos e materiais dedicados à luta de ideias. Mas também ocorreu um retrocesso no terreno das ideias propriamente ditas: no mundo inteiro, caiu a influência do marxismo (ou, melhor seria dizer, dos marxismos) e cresceu a influência das correntes ideológicas burguesas, inclusive no interior dos partidos de esquerda.
28.Em alguma medida isto era inevitável. A derrota do socialismo de tipo soviético, da social-democracia europeia e do nacional-desenvolvimentismo, acompanhadas de uma nova fase no desenvolvimento capitalista, obrigaram a classe trabalhadora a tentar construir interpretações novas para os problemas antigos e a buscar construir soluções novas para os problemas novos. E enquanto isto não acontecia, é evidente que as ideias burguesas ocupariam mais espaço do que antes.
29.Um problema adicional, no caso do Brasil e do PT, é que não fizemos este “dever de casa”. Embora haja no Partido muita gente que gosta de citar o Gramsci, a verdade é que não se leva muito à sério a ideia de que o Partido deva ser um intelectual coletivo. Isto pode ser confirmado, analisando-se por exemplo as experiências & vicissitudes do Instituto Cajamar e da Fundação Perseu Abramo.
30.Importante lembrar que não há nenhuma experiência exitosa de luta pelo socialismo, que não tenha envolvido a construção de uma intelectualidade orgânica. Não estamos falando, como é comum na esquerda brasileira hoje, de buscar a “assessoria” de intelectuais tradicionais (estejam eles aonde estiverem e sejam quem forem). Estamos falando, isto sim, de construir uma “contra-elite intelectual”, vinculada organicamente à classe trabalhadora, capaz tanto de enfrentar o pensamento dominante quanto de construir uma visão de mundo adequada aos interesses da nossa classe.
31.A debilidade da nossa intelectualidade orgânica fica clara no caso do debate econômico: parte dos petistas incorporou o credo neoliberal (exemplo disto é a submissão mental ao dogma do superávit primário); outra parte combate o neoliberalismo a partir do credo keynesiano (o que implica, como estamos vendo neste segundo governo Dilma, num alto risco de capitulação). Aliás, a própria ilusão de que os “economistas profissionais” são os mais habilitados para discutir e elaborar nossas alternativas é por si mesmo reveladora.
32.Outro exemplo de debilidade da nossa intelectualidade orgânica está na maneira como interpretamos a estrutura de classes da sociedade brasileira. Há entre nós desde aqueles que abandonaram a luta de classes como vertebradora, tanto da ação quanto da compreensão da realidade; passando por aqueles que acreditam na luta, mas não acreditam no caráter central do conflito entre a classe trabalhadora e os capitalistas; até aqueles que corretamente reconhecem o papel central da luta de classes e do conflito capital versus trabalho, mas não atualizaram seu conhecimento da realidade, muito embora a composição de cada classe e do conjunto da estrutura social brasileira tenha sofrido mudanças importantes desde os anos 1980.
33.Podemos dizer, portanto, que a esquerda brasileira como um todo e o PT em especial ampliaram sua influência política, mas carregando uma bagagem teórica e ideológica debilitada e as vezes parcialmente emprestada dos seus adversários. O que ajuda a explicar a perplexidade de alguns, frente ao que está ocorrendo agora.
34.Esta contradição entre influência política e influência ideológica — que também ocorre no plano nacional, em que ganhamos 4 eleições presidenciais mas sem consolidar uma maioria político-cultural a favor de mudanças estruturais — tem relação direta com determinadas opções políticas que fizemos desde 1995. Resumidamente, certos “atalhos” podem custar muito caro no médio prazo.
35.É bom que se diga, entretanto, que não somos os únicos. Por exemplo, parte da esquerda latino-americana vive a mesma situação: mesmo em países onde a situação política é mais avançada, a compreensão teórica dos processos está extremamente defasada e muitas vezes atrapalhada pela predominância de paradigmas enferrujados e as vezes totalmente incorretos quando se trata da interpretação do capitalismo do século XXI, do balanço das tentativas de construção do socialismo no século XX e das formulações estratégicas. Claro, dizem que a coruja de Minerva alça voo ao anoitecer. Mas nossa coruja às vezes parece empalhada.
III. Desistir da luta pelo poder
36. Pode parecer estranho, mas há várias correntes – como os zapatistas, por exemplo — que acreditam ser possível “mudar o mundo sem tomar o poder”.
37.Aqui no Brasil temos algo análogo, por exemplo o Frei Betto, que volta e meia critica o PT por ter –na opinião dele– cometido o erro de trocar um projeto de nação por um projeto de poder, quando a verdade é o oposto: o PT foi abrindo mão da luta pelo poder e se contentando em lutar pelo governo. Para depois de quatro eleições presidenciais, descobrir o óbvio: enquanto a classe dominante controlar os fatores fundamentais de poder, ela continuará dispondo dos meios seja para virar o jogo a seu favor, seja para limitar de modo estrutural nossos avanços.
38.O caso do Frei Betto, deixando de lado alguns aspectos da digamos personalidade política dele, revela um aspecto do problema que vale a pena comentar: a influência do pensamento cristão no petismo fez e faz com que sejamos muito suscetíveis ao senso comum segundo o qual “todo poder corrompe”, “política é coisa suja” etc. Senso comum muito útil aos que já detêm o poder, para convencer os que não detém o poder a manterem-se no seu lugar, para “não se sujar”.
39.Este senso comum acerca do poder afetou negativamente o nosso pensamento e nossa ação estratégica. E — ao não entendermos nem tratarmos corretamente o tema do poder –, acabamos na teoria fazendo um discurso liberal sobre ética & cidadania, ao mesmo tempo em que na prática baixamos a guarda inclusive no tema da corrupção.
40.A este respeito, é bom dizer que nosso partido foi vítima precoce do mesmo mal que atingiu tantos partidos socialistas, especialmente daqueles que detinham o poder de Estado. Claro que a oposição de direita é hipócrita, claro que a justiça é seletiva, claro que a mídia deforma, claro que nossos governos tomaram medidas importantes no combate à corrupção. Mas também é verdade que baixamos a guarda, nos acomodamos ao modo tradicional de fazer política e – além disso—introduzimos em nosso Partido métodos degenerados de luta interna, baseados na mesma mercantilização eleitoral que condenamos na sociedade. Sem falar no olhar de paisagem com que vários de nós passaram a encarar os famosos “sinais exteriores” ostentados por alguns filiados.
41.Vale lembrar que a burocratização e a corrupção em larga escala atingiram vários partidos no Leste Europeu. E que na China, o PCCh transformou o combate à corrupção em questão de vida ou morte. O tema da corrupção, portanto, pode ser “ético” no plano individual, mas no plano da luta de classes é parte da disputa pelo poder. E quem não quer disputar/conquistar/tomar o poder, é disputado/conquistado/tomado por quem controla o poder.
42.Aceita a tese de que não podemos desistir da luta pelo poder, é preciso enfrentar três temas vinculados: o que é o poder, quem deve conquistar o poder, como conquistar o poder. Sobre isto há um debate internacional que podemos rastrear pelo menos desde os tempos da criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864, até os tempos atuais. Este debate é tão atual que, por exemplo, leva alguns de nós a “defender a democracia” e outros a “defender as liberdades democráticas”. Como não há tempo nem espaço, sejamos telegráficos: quem deve conquistar o poder é a classe trabalhadora; como conquistar o poder é “o” debate estratégico; e o poder é uma relação social, que se cristaliza periodicamente em determinadas instituições (a propriedade das empresas, as forças armadas, os meios de comunicação, as instituições estatais, as organizações populares etc.).
43.Se queremos aprender algo das experiências internacionais, especialmente das fracassadas, que são as mais interessantes, devemos retomar o debate estratégico e dar conta das questões expostas no item acima. Digo que as fracassadas são as mais interessantes, no espírito da frase famosa: “todas as famílias felizes são parecidas; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”.
IV. Romper a relação entre reformas e revolução
44.Na virada do século XIX para o século XX, houve um grande debate entre os principais dirigentes da socialdemocracia – pessoas como Rosa Luxemburgo, Bernstein, Kautsky e Lenin – acerca da relação entre a luta pelo socialismo e a luta cotidiana da classe trabalhadora, por melhorar suas condições de vida no capitalismo.
45.Este debate continuou por todo o século XX e reaparece, sob diferentes formas, no dia-a-dia de todo militante de esquerda. Na prática somos estimulados a dar conta do imediato, do urgente, do que está ao nível de consciência das pessoas. Mas se nos limitarmos a isto, que tipo de mudança produziremos ao final?
46.Dito de outra maneira e dando um exemplo: devemos lutar por aumentar nossos salários, mas o aumento dos salários não vai modificar o sistema social em que alguns são proprietários e outros vendem sua força de trabalho. E se o que queremos é mudar este sistema, então é preciso combinar a luta por “reformas” com a luta por “revolução”.
47.No caso do Brasil, fazer esta discussão exige remover várias camadas de confusão. De cara, vivemos num país onde nunca houve uma revolução social, pelo menos não algo similar às várias revoluções ocorridas na França entre 1789 e 1870, nem similar a guerra de independência dos EUA e a posterior guerra civil que acabou com a escravidão, nem similar ao que ocorreu na Rússia, ou na China, ou em Cuba.
48.Ao mesmo tempo, vivemos num país onde a classe dominante chama episódios como 1930, 1932 e 1964 de “revolução”.
49.Simultaneamente, aqui no Brasil o termo reformas possui vários significados. Exemplo: as “reformas de base” defendidas pela esquerda em 1964 versus as “reformas neoliberais” aplicadas pelo PSDB nos anos 1990.
50.Esta confusão digamos linguística não é apenas linguística. Corresponde a um contexto extremamente resistente ao radicalismo político e social.
51.Quando o PT surgiu, ele enfrentou esta tradição de conciliação e pacto; mas ao longo do tempo, fomos nos habituando, nos conformando, nos adaptando, nos domesticando – para usar uma expressão que, por essas ironias da vida, foi notabilizada noutros tempos pelo atual presidente do PT, Rui Falcão.
52.Hoje o PT precisa recuperar sua “indignação com tudo isto que está aí”, recuperar sua capacidade de expressar a insatisfação popular, a rebeldia plebeia, o protesto proletário. Pois se não fizermos isto, se não formos também expressão da insatisfação e rebeldia social, nos converteremos num “partido da ordem”, no sentido estrutural da palavra. É o que trataremos no próximo ponto.
V. Subordinar o Partido ao Estado e/ou ao governo
53.Nos anos 1990, quando a União Soviética veio abaixo, importantes intelectuais petistas diziam que um dos maiores ensinamentos daquela experiência foi a de que não se deve confundir nem subordinar Partido e Estado. Este é um tema muito complexo, pois a experiência histórica mostra que quando há uma revolução, o Partido que dirige esta revolução torna-se ele mesmo o núcleo do poder de Estado. E que, portanto, nestes casos, embora Estado e Partido sejam instituições diferentes, o vínculo entre elas é muito forte.
54.Reconhecendo esta realidade, tanto Lenin quanto Gramsci defendiam que o Partido assumisse conscientemente o papel de construtor do novo Estado. Sendo que a partir da experiência prática entre 1917 e 1924, Lenin enfatizava muito a distinção entre as tarefas de “administração” e “direção” (ou seja, entre governo e Estado).
55.No debate dos anos 1990, alguns intelectuais do PT entraram na onda de estigmatizar Lenin e desidratar Gramsci, ao ponto de converterem a noção de disputa de hegemonia em “interlocução” institucional. E no lugar da visão clássica da esquerda sobre o Estado, grande parte do PT foi adotando o famoso “republicanismo”, que tem seu melhor exemplo no comportamento passivo do governo, especialmente do atual ministro da Justiça, frente à atitude de setores do judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal: “aos inimigos, nem mesmo a lei”.
56.Num resumo: da crítica parcialmente justa à confusão entre Partido e Estado, alguns avançaram para a crítica ao papel dirigente do Partido frente ao Estado e terminaram subordinando o Partido ao Estado.
57.Esta discussão sobre a “separação entre Partido e Estado” estava em curso, no Brasil dos anos 1990, no mesmo momento em que a esquerda brasileira tinha como um de seus objetivos conquistar governos. E quando chegávamos a uma prefeitura, a um governo estadual e mesmo ao governo nacional, ganhavam destaque os problemas na relação entre partido e governo. Problemas para os quais a “definição teórica” segundo a qual partido é partido, governo é governo, Estado é Estado, demonstrou-se absolutamente insuficiente. E, na prática, parcelas crescentes do PT vem se subordinando aos seus governos e através deles, ao Estado.
58.Evidente que os problemas citados ocorreram e ocorrem em diversas experiências internacionais, especialmente desde 1998 na América Latina. Ou seja: onde a esquerda chegou ao governo através de eleições, experimenta problemas similares. O que nos remete ao debate sobre a relação entre partido, governo e Estado, em condições normais de temperatura e pressão.
59.As condições anormais de temperatura e pressão são aquelas em que, no curso de uma revolução, a esquerda tenta construir ou reconstruir à sua imagem e semelhança o Estado. Temos outras situações em que, quando vence uma eleição em condições de grande crise, a esquerda tenta reformar o Estado através de um processo constituinte.
60.O Brasil não viveu nenhuma destas situações. Aqui a esquerda foi chegando ao governo e foi deixando de lado as tentativas de transformar a estrutura do Estado (leia-se: aquelas estruturas e regras de funcionamento que definem a quem o Estado realmente serve). Basta ver o que aconteceu com o orçamento participativo e mesmo as limitações de nossas conferências nacionais e conselhos, para perceber do que estou falando.
61.Como resultado disto, o governo é por definição refém do Estado. E quando um partido tem como única orientação estratégica disputar e vencer eleições, ele torna-se refém do governo, que é refém do Estado. Dito de outro jeito: o Partido tende a deixar de ser uma instituição cujo objetivo é subverter a ordem, e tende a converter-se numa instituição paraestatal.
62.Um dado irônico é que esta mutação na natureza do Partido é justificada por discursos os mais variados. Desde 2003 ouvimos de tudo, desde argumentos supostamente “leninistas” em favor da centralização e subordinação do partido ao governo, até argumentos liberais e “republicanos”. Mas uma coisa é a aparência e outra coisa é a essência do fenômeno. E a essência é a conversão de parcelas crescentes do partido em organismo paraestatal, de um Estado construído por e a serviço de nossos inimigos de classe.
63.Grande parte das discussões sobre a “burocratização” do Partido, sobre sua desimportância, sobre sua subordinação ao governo, assim como sobre a relação entre movimentos, partido e governo. estão relacionados a este processo de fundo, de “estatização” do Partido. Não deixa de ser curioso que à frente deste processo estejam, muitas vezes, os que mais alto gritaram contra a “confusão” entre Partido e Estado no socialismo real…
64.Em reação a este processo de estatização da vida partidária, há os que dizem que o problema está em disputar eleições e/ou que o antídoto estaria nos movimentos sociais. Em relação ao primeiro argumento, podemos dizer que – enquanto estivermos na atual situação histórica — ele equivale a pedir para parar o mundo, para que possamos descer. Afinal, não existe possibilidade – ao menos nas atuais condições históricas – de “escolher” não disputar eleições ou de “escolher” não dar importância para a luta de classes que se trava no terreno das instituições de Estado. Aliás, alguns dos que menosprezam a importância estratégica das disputas eleitorais acabam, na vida real, participando delas da pior maneira possível. A questão, óbvio, está em como participar ou, de maneira mais geral, no “lugar” que a disputa eleitoral ocupa no conjunto da estratégia. O que nos conduz ao tema das lutas e movimentos sociais.
VI. Achar que a salvação está nos movimentos sociais
65. Quando o PT surgiu, dava-se uma ênfase enorme ao papel dos movimentos sociais e ao mesmo tempo havia uma subestimação do papel da luta institucional. Hoje, muitos dos personagens que nos anos 1980 encabeçaram a construção do PT, voltam a fazer um discurso enfático sobre o papel estratégico dos movimentos sociais, como um antídoto à “institucionalização”.
66.Esta defesa da retomada de um certo discurso e prática, defesa que alguns chamam de “volta às origens”, esconde uma armadilha lógica. A saber: se nós defendíamos aquilo e deu nisto, por qual razão defender de novo aquilo agora vai dar noutro resultado, agora vai resolver o problema? Dito de outro jeito, temos que responder porque “aquilo” deu “nisto”?
67.Não temos tempo nem espaço para apresentar aqui uma resposta adequada à tal questão, mas é possível indicar onde está um dos núcleos “teóricos” do problema. Trata-se da confusão que se faz entre três níveis diferentes de questões: 1) o movimento social enquanto movimento real de setores ou do conjunto da classe trabalhadora; 2) o movimento social enquanto organizações que expressam de maneira permanente determinados setores da classe trabalhadora; 3) o movimento social enquanto militantes políticos (integrantes ou não de partidos formais) que atuam e dirigem o movimento real e/ou as organizações permanentes.
68.Evidente que não há caminho para o êxito da classe trabalhadora sem o concurso articulado destes três níveis. Mas, atenção, a cada tarefa seu instrumento. Olhando para a experiência histórica, não há absolutamente nenhum caso em que os “movimentos sociais” tenham resolvido o problema do “poder de Estado”, nem mesmo conquistado governos. Quem faz isto são os partidos. O exemplo da Bolívia, para tristeza de quem tem uma visão ingênua sobre o papel dos movimentos sociais, talvez seja um dos melhores exemplos disto.
69.Parte da confusão pode ser desfeita quando percebemos a relação que existe entre o “partido” no sentido amplo e o partido no sentido estrito da palavra. Apenas uma minoria da “militância dos movimentos sociais”, ou seja, apenas uma minoria daquelas pessoas que dirigem as organizações e os movimentos sociais, são filiadas a partidos políticos no sentido estrito da palavra. Mas todos e todas que são “militantes sociais” integram o partido no sentido amplo da palavra, ou seja, compõem o setor de vanguarda da classe trabalhadora. Em determinados momentos da história de um país, um “partido no sentido estrito” hegemoniza o “partido no sentido amplo”. Em certa medida isto aconteceu com o PCB no período 1945/1964 e com o PT no período 1989/2003. Noutros momentos, não há (ou está em crise) um partido hegemônico e a militância social vive em estado de crescente dispersão. Nestes momentos surge a tendência a tratar como absolutamente distintas e até antagônicas a “militância partidária” e a “militância social”. Surge também uma tendência a atribuir aos “militantes sociais” e/ou aos “movimentos sociais” tarefas de partido.
70.O fato é que, quando os partidos falham, apelar aos “movimentos” pode ser apenas uma maneira de não responder por qual motivo os partidos falham. Vide as expectativas ontem depositadas no Syriza e hoje depositadas no Podemos. Assim, há um conjunto de questões a responder de forma articulada: qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto luta real e concreta), e qual o lugar que os movimentos sociais (enquanto organizações permanentes) e qual o lugar que os militantes dos movimentos sociais têm na estratégia global de transformação do Brasil?
71.No fundo, só consideramos acertado falar que a “salvação está nos movimentos sociais” no sentido de que nossa estratégia só terá êxito se tiver apoio no movimento real da classe trabalhadora, se soubermos combinar formas de luta, se por exemplo estimularmos a construção de um poder alternativo e paralelo, que possibilite termos um governo que não seja refém do Estado, que permita termos um partido que não seja refém do governo. Ou seja, a “salvação” está também nos movimentos sociais, a depender de como se articule –no contexto de uma estratégia geral– a ação do movimento real da classe, a ação das organizações da classe, a ação dos militantes que atuam nos movimentos sociais (partido amplo), a ação dos militantes partidários (partidos no sentido estrito).
72.O que foi dito antes tem relação direta com a discussão que está em curso, hoje, sobre a necessidade de construir uma frente popular (para alguns) ou uma frente de esquerda (para outros). As diferentes visões programáticas, estratégicas e táticas se traduzem em pelo menos três posições organizativas: há os que pretendem construir uma frente ampla de partidos, movimentos e “personalidades”, há os que pretendem construir uma frente de movimentos e há os que pretendem construir um novo partido chamado de “frente”. Evidentemente, se prevalecesse a posição destes últimos, não haveria frente alguma. Já os que defendem uma frente apenas de movimentos estão querendo utilizar um instrumento (a Frente) para tentar resolver um problema de outra natureza (o Partido).
VII. O culto à personalidade
73.Na ausência de uma visão ou resposta estratégica, muita gente deposita suas esperanças em soluções mágicas. Voltando ao debate dos anos 1990: fazia parte do pacote ideológico “comprado” por algumas pessoas criticar o socialismo soviético, a revolução, o partido de vanguarda e o culto à personalidade.
74.A crítica foi tão malfeita que, quando o problema surgiu entre nós, tivemos dificuldades para reconhecer e tentar corrigir o problema. O resultado é que em vários países latino-americanos, inclusive no Brasil, pratica-se um culto à personalidade de baixa intensidade.
75.No nosso caso, na atual conjuntura, trata-se do último refúgio dos desesperados: “tá tudo muito complicado, mas o Lula vai ganhar as eleições em 2018 e tudo vai se resolver”.
76.Quem diz isto geralmente não explica por quais motivos ele vai ganhar as eleições e por quais motivos seu governo vai corrigir os rumos. Trata-se no fundo de uma crença, não de análise. Uma crença que tem uma larga tradição na história do Brasil e também uma larga presença no movimento socialista internacional.
77.Não é preciso gastar muito argumento: os indivíduos, especialmente as lideranças, têm um papel na história, maior ou menor. A questão é saber que tipo de relação se estabelece entre o indivíduo e o coletivo, entre as lideranças, o partido, a classe e a maioria do povo. Como tantas outras questões que tratamos aqui, não há uma resposta única, nem que seja válida para todos os tempos e situações. E, para falar a verdade, embora haja acertos, os erros cometidos a respeito disto são monstruosos.
78.No caso do Brasil, temos uma peculiaridade: o processo eleitoral e o exercício de mandatos eletivos estimulam um determinado tipo de relação entre o indivíduo e o coletivo.
79.Se o coletivo (seja a sociedade, seja o Partido) não criar antídotos, o que vai prevalecer será o poder unipessoal no executivo e o cretinismo no parlamento (para citar um cidadão conhecido, o cretinismo parlamentar consistia “numa espécie de delírio que acometia as suas vítimas, as quais acreditavam que todo o mundo, o seu passado e o seu futuro se governavam por uma maioria de votos ditada por aquela assembleia (…) e tudo o que se passava fora daquelas quatro paredes muito pouco ou nada significavam ao lado dos debates importantes“).
80.Uma das curiosidades é que os executivos autoritários e os parlamentares cretinos muitas vezes usam como desculpa o fato de terem sido eleitos pelo povo. O que confirma que a demagogia basista pode ser, as vezes, a melhor desculpa para o autoritarismo.
81.Isto nos remete a duas discussões que estão relacionadas, mas são distintas: como ampliar as liberdades democráticas na sociedade e como garantir a democracia no interior do Partido. O primeiro tema está relacionado com a discussão da Constituinte, da reforma política e do Estado, da democracia na comunicação etc. Já o segundo tema diz respeito diretamente ao que estamos discutindo neste texto: o controle da direção pelas bases, o controle dos mandatários pela direção, as estruturas, o funcionamento e o financiamento do Partido, sua relação com a militância social, com a classe e com a maioria do povo.
82.Há um imenso debate a respeito de como fazer isto, envolvendo questões como partido de massas e de quadros, partido de vanguarda e “centralismo democrático”, papel das direções e direito de tendências, existência e papel de funcionários e profissionalizados (o que no caso da atual esquerda brasileira envolve não apenas a burocracia partidária, mas também a sindical, parlamentar e governamental), funções e poderes dos organismos de base (núcleos, setoriais, células), formação e comunicação partidárias etc. Trata-se de um debate tão apaixonante, pelo menos para os que somos dirigentes na ativa ou na reserva, que é comum perdermos de vista a natureza essencialmente política do problema.
VIII. Abrir as portas do partido
83.Certas pessoas gostam quando aparece uma solução fácil para um problema difícil. Infelizmente, muitas vezes trata-se apenas de prestidigitação. Ou seja: se nosso problema é de linha política, olhemos para o outro lado e vamos discutir o estatuto. Se nosso problema é que a direção não está à altura das tarefas, olhemos para o outro lado e vamos discutir como “organizar o partido a partir da base”. Se nosso problema é estar perdendo apoio na classe trabalhadora, olhemos para o outro lado e vamos nos transformar em um “partido de portas abertas”, o que pode significar várias coisas diferentes, não necessariamente aquilo de que realmente precisamos: reatar os laços com a “velha” classe trabalhadora e construir laços com a “nova” classe trabalhadora. Se nosso partido está vivendo uma crise tremenda, que lembra perigosamente o estágio fatal de outros grandes partidos de esquerda no mundo e no Brasil, vamos fingir que somos uma jabuticaba e que nada disso vai acontecer conosco.
84.Um dos partidos mais interessantes do século XX foi o Partido Comunista Italiano. Viveu experiências tremendas (revolução, ascensão do fascismo, guerra de guerrilhas, lutas sociais e parlamentares), construiu uma interpretação acerca da Itália e do mundo (vide Gramsci), possuía uma vida interna pujante, base de massas, força na classe trabalhadora… e desapareceu, suicidou-se. A tragédia é detalhadamente descrita no livro O alfaiate de Ulm, de Lucio Magri. Livro que este seminário deveria sugerir como leitura obrigatória para todo petista. Até porque nos permite perceber algo muito interessante: a crise de um partido que tem enorme importância não é um fenômeno singular, faz parte da crise mais geral de todo um sistema político.
85.Nosso PT tem infinitos problemas organizativos, alguns muito superiores aos de outros partidos que desapareceram na poeira da história. Dou como exemplo a situação de colapso em nossa comunicação, o déficit de formação política, o esfacelamento dos núcleos de base, o enfraquecimento da ligação de parcelas de nosso partido com a vida e a luta cotidiana dos trabalhadores, a dependência frente aos recursos financeiros públicos e empresariais etc. Esta situação nos empurra, como é óbvio, a dar aos problemas organizativos um papel destacado; não digo que isto seja totalmente errado, mas acho que é essencialmente errado, se por “problemas organizativos” entendermos técnica, administração, regras e estatuto.
86.Para explicar o que quero dizer, termino com uma “anedota”. Deixei de ser dirigente profissionalizado em dezembro de 2013. E depois de 16 anos resolvi tirar um ano sabático, que no meu caso foi dedicado entre outras coisas a algo meio vintage: ler os 50 volumes das Obras Completas do Lenin.
87.Lenin é conhecido, dentre os dirigentes da esquerda, pelo alto valor que deu ao tema do Partido. Cinquenta volumes depois, obviamente constatei que isto é verdade. Mas muito mais verdade é que, para Lenin, a questão organizativa é uma questão política. Como ele dizia, a organização é política concentrada. Noutros termos, os problemas organizativos do PT não serão resolvidos, se não resolvermos nossos problemas políticos.
88.Adendo por fim outro comentário, sugerido por um companheiro e também baseado no Lenin: o russo dizia que não existe situação sem saída para a burguesia. Agrega o citado companheiro: a burguesia aprende com nossos erros e acertos. Nós precisamos fazer o mesmo.
26 de agosto de 2013
PS: Agradeço a quem opinou sobre este texto, em especial ao Rodrigo Cesar, ao Diego Pitirini, ao Wladimir Pomar, ao Breno Altman, a Rachel Moreno, ao Lincoln Secco, ao Carlos Virtude e demais participantes da lista Marxorg: Marxismo e Organização Política. Por óbvio, nenhum dos que ajudaram tem qualquer responsabilidade pelo que foi dito neste texto.
* Valter Pomar é professor e militante do PT
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