O processo político e social na Venezuela, após a morte do presidente Hugo Chávez, ocorrida na terça-feira (5), vai continuar, com a eleição do vice-presidente Nicolás Maduro, que será eleito presidente da República e cumprirá um papel destacado. Porém, é provável que ocorra a constituição de uma liderança coletiva para dar prosseguimento ao projeto iniciado há 14 anos. A avaliação é de Valter Pomar, secretário-executivo do Foro de São Paulo e membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, em entrevista à RBA.
Para ele, é equivocado comparar Maduro a Chávez, que emergiram em conjunturas históricas muito distintas. “O tipo de liderança que Chávez representou foi possível porque ele foi produzido por esse movimento político-social ocorrido na Venezuela desde o início. As lideranças que surgiram depois ou ao longo do processo e as que vão surgir no futuro são de tipos diferentes”, avalia Pomar.
Na entrevista, Pomar diz também que não se pode comparar a liderança de Chávez e do ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. “Não ajuda. Muito menos neste momento. Conseguimos chegar onde chegamos na América Latina porque conseguimos cooperar, e a cooperação pressupõe liderança compartilhada, e não disputa de protagonismo”.
Recentemente você escreveu que “a chamada revolução bolivariana é um processo político-social muito consistente, que não depende nem se resume a uma pessoa”. Mas neste momento, qual a medida da falta de Hugo Chávez, como liderança, na América Latina?
Continuo achando a mesma coisa que achava quando escrevi o texto que você leu. Existe um processo social na Venezuela que é encabeçado por uma pessoa, que não foi criado por essa pessoa. Um processo social dessa magnitude que sobrevive ao longo de 14 anos, ampliando seu espaço, consolidando políticas, fortalecendo instrumentos, esse processo não depende de uma só pessoa. É um processo político-social que mobiliza milhões de pessoas. Então não tenho por que acreditar nessa tese de que uma vez que uma pessoa desapareça, morra, o processo acaba. A grande questão é: que liderança vai substituir essa que morreu?
Nicolás Maduro tem condições de se consolidar como liderança?
Acho que o Maduro será eleito presidente da República e evidentemente cumprirá um papel destacado. Mas a minha opinião é que vai ocorrer a constituição de uma liderança coletiva. Porque é evidente que o tipo de liderança que foi criado na primeira fase da revolução bolivariana não é copiável, não tem como refazer o tipo de lealdade política que se estabelece num movimento social e político no seu início e achar que esse mesmo movimento em etapas mais avançadas vai criar lideranças individuais semelhantes.
É óbvio que o tipo de liderança que Chávez representou foi possível porque ele foi produzido por esse movimento político-social ocorrido na Venezuela desde o início. As lideranças que surgiram, depois ou ao longo do processo, e as que vão surgir no futuro são de tipos diferentes. O mais provável é que tenhamos o surgimento de uma liderança coletiva, que pode ser o Grande Pólo Patriótico, o PSUV, um grupo de dirigentes, mas não acredito na ideia de que vai haver uma espécie de um segundo Chávez para substituir o primeiro.
Grande parte dos analistas sérios – não estou falando dos “picaretas” – que dizem que o Maduro vai ter dificuldades é porque ficam se perguntando se Nicolás Maduro vai substituir o Chávez. Claro que não vai. Não porque o Maduro não tenha características individuais valiosas…
Ele não tem o carisma de Chávez…
O carisma não é um fenômeno dado, é um fenômeno construído historicamente. E o processo histórico que construiu o tipo de liderança carismática do Chávez corresponde à fase inicial do processo, e nós estamos em outra fase. Vou dar um exemplo brasileiro. As pesquisas de opinião mostram que Dilma tem mais votos hoje do que Lula. Mas ninguém duvida que o Lula tem mais carisma que a Dilma, não é verdade? O certo seria dizer que o tipo de carisma do Lula é um; o tipo de carisma da Dilma é outro.
O tipo de carisma do Lula corresponde a um período social em que esse carisma foi constituído. O da Dilma foi constituído em um período de governo, ainda que ela também absorva a participação política anterior dela na luta armada. Isso é muito interessante: o que compõe o personagem carismático da Dilma hoje é uma mistura entre o que ela era na luta contra a ditadura e o que ela foi desde que entrou no governo Lula.
O Maduro terá outro tipo de liderança, diferente da do Chávez, pela simples razão de que são lideranças constituídas socialmente de maneira e em momentos históricos distintos. Essa questão, na minha opinião, é politicamente irrelevante. A questão relevante é saber: o Maduro vai ser eleito? O PSUV vai continuar com seus aliados governando o país? A minha opinião é que sim. Porque a base social do processo é muito consistente.
Mas você concorda que o Partido Socialista Unido da Venezuela, o PSUV, partido de Chávez, não é uma instituição tão consolidada quanto outras na América, como o PT, e que a situação partidária na Venezuela é mais frágil do que no Uruguai, Argentina…
Não concordo. A pergunta feita parte de um paradigma escondido. O que é uma estrutura partidária consolidada? Como se mede isso? Pelo número de votos? Se é isso, eles estão muito bem. Se for a capacidade de fazer transformações sociais, estão muito bem. Pela capacidade de renovar lideranças? Se for isso eles vão confirmar essa capacidade agora.
Não tem um partido na América Latina que possa ser padrão para os outros, porque cada um atua numa realidade completamente distinta. E mesmo que a gente busque os parâmetros mais universais, como número de votos em relação ao total da população, capacidade de fazer transformações políticas e ter hegemonia sobre o processo, capacidade de renovar, ter novas gerações dirigentes, eles estão muito bem.
Por exemplo, nós já passamos aqui no Brasil pelo teste de renovar uma geração, a eleição da Dilma. Eles não passaram por esse teste ainda, vão passar daqui a 30 dias. Mas em compensação eles estão melhor que nós no quesito percentual de apoio da população, e no quesito capacidade hegemônica, ou seja, capacidade de fazer mudanças coerentes com seu programa. Meu critério é esse: eles passaram em dois de três testes e vão passar pelo terceiro daqui a 30 dias. Se passarem por esse, estão no primeiro time. Terão demonstrado força eleitoral, capacidade hegemônica e de renovação de dirigentes.
Evo Morales disse que “Chávez continua sendo comandante das forças libertárias da América”. Como você compara Lula e Chávez como lideranças regionais e também dentro dos respectivos países?
Eu não faço esse tipo de comparação por razões políticas. Não ajuda. Muito menos neste momento. Conseguimos chegar onde chegamos na América Latina porque conseguimos cooperar, e a cooperação pressupõe liderança compartilhada, e não disputa de protagonismo. Essa necessidade prossegue. O sucesso lá e o sucesso aqui se somam. Disputa de protagonismo atrapalha.
A presidenta Dilma disse, ao comentar a morte de Chávez que “em muitas ocasiões o governo brasileiro não concordou integralmente com o presidente Hugo Chávez”. A que diferenças Dilma estaria se referindo?
Não faço a menor ideia, e se eu fosse ela eu não teria falado isso. A hora é de reforçar convergências.
A morte de Chávez é mais sentida e tem mais repercussão nos países hispânicos, nossos vizinhos na América…
Isso é óbvio…
Por que?
O Brasil tem uma longa história de estar de costas para a América Latina. Colonização portuguesa aqui, colonização espanhola ali; aqui teve uma independência conduzida pelo monarca português e seu filho, lá teve uma guerra de independência; aqui, depois da independência a gente teve uma longa monarquia com escravidão, lá tivemos, em muitos países, república com abolição; construiu-se uma cultura de “nuestra América”, uma cultura comum nos países hispânicos que aqui não se construiu.
Falar de Bolívar aqui, para qualquer cidadão, não é a mesma coisa. Em qualquer país latino-americano de língua hispânica você vai ver que as pessoas têm uma consciência histórica muito mais integrada. Mesmo entre as pessoas que tenham opiniões políticas antagônicas. Bolívar é um herói nacional e regional para diferentes correntes políticas.
Então a figura do Chávez é culturalmente muito mais impactante para o povo de fala hispânica do que para os brasileiros, embora para a militância política de esquerda, PT, PCdoB, a morte dele tenha sido muito sentida. Mesmo a intelectualidade progressista, democrática, e aquela que é conservadora, sabe da importância histórica do Chávez.
A era Chávez foi revolucionária ou reformista?
Esse período histórico que estamos vivendo na América Latina é de reformismo revolucionário, uma expressão inventada, que eu saiba, por um autor inglês chamado Ralph Miliband, nos anos 70, exatamente para falar de processos que, não sendo revoluções clássicas como foi a revolução russa, chinesa, cubana – em que as forças transformadoras tomam o poder do Estado e fazem quase que tábula rasa das instituições políticas –, usam o poder para reformar a realidade econômica e social. Miliband e outros diziam que há situações em que as forças transformadoras não tomam o poder, elas ocupam partes do aparato do Estado e vão fazendo as transformações. Então não é propriamente uma solução revolucionária, mas também não é um processo simples de reformas.
Brasil e Venezuela são semelhantes nessa avaliação?
Fazem parte do mesmo processo histórico, mas não vivem a mesma situação. No Brasil temos uma situação anterior a essa. Ainda estamos numa etapa de superar a herança neoliberal.
Há quem diga – e não pessoas necessariamente conservadoras – que a dependência do petróleo da Venezuela e a indústria incipiente prejudicam o país, o que pode se agravar se o processo do ponto de vista econômico não for bem conduzido…
De fato a economia venezuelana é fortemente dependente de um único produto. Essa dependência foi criada nos últimos 100 anos. O Chávez herdou essa limitação, entre outras coisas. O que pode ser discutido é em que medida, durante esses 14 anos, se conseguiu reduzir essa dependência. E também deve se discutir o que mais precisa ser feito para reduzir essa dependência.
Mas vamos combinar que isso é uma operação dificílima, como se sabe, olhando para todos os países produtores de petróleo. A tendência, por razões de economia política, de as pessoas se concentrarem na produção desse bem e importarem o resto é muito grande. Pelo que conheço da Venezuela, eles continuarão a fazer um esforço de industrialização e de segurança alimentar.
Têm consciência do problema e estão trabalhando para superá-lo. Se esse problema não for superado, isso se torna uma trava, não de curto, mas de longo prazo, ao processo de transformação venezuelano. Não existe uma sociedade igualitária moderna, profundamente democrática se ela não tiver uma economia de alto grau de autossuficiência, uma autonomia econômica expressiva.
A oposição venezuelana, no início da era Chávez, aparecia como muito feroz, e hoje, depois de muito tempo, comparando com o Brasil, onde o governo popular, com Dilma, está no terceiro mandato, a impressão não é de que a oposição na Venezuela evoluiu e percebe a mudança e a brasileira é que hoje não consegue evoluir?
Existem duas posturas, na oposição conservadora em todos os países da América Latina. Um setor busca se aproximar, conciliar, conviver com uma hegemonia de centro-esquerda, às vezes mais, às vezes menos radical. E outro setor não faz nenhum acordo, nenhuma conciliação, promove guerra aberta. Esses dois setores cooperam, essas duas linhas convivem, lá e aqui. Estão presentes e atuantes de uma forma ou outra, dependendo do momento, das circunstâncias, cooperando. Aliás, deixe-me dizer: que nota lamentável a de Obama. Não sabe nem fazer hipocrisia. É uma nota quase comemorando a morte de Chávez…
Rede Brasil Atual
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