quinta-feira, 4 de abril de 2013

10 anos de PT no governo e o desafio de uma esquerda socialista de massas

Entrevista especial com Valter Pomar

O governismo ainda é dominante no PT. Muita gente no Partido ainda não aprendeu a diferenciar o ser governo do ser governista. É óbvio que o PT deve defender, sustentar, apoiar seus governos. Mas o papel do PT vai além disso. Os governos de coalizão, como foram os governos Lula e como é o governo Dilma, são governos em disputa. Cabe ao PT disputar seus governos, o que supõe perceber as diferenças entre governo e partido, evitando o governismo que confunde um e outro. E cabe ao PT disputar a sociedade, para acumular forças em favor de seu projeto programático, estratégico, histórico. Se não fizermos isso, vamos acabar transformando o programa mínimo de um governo de coalizão, no programa máximo do partido. Infelizmente, amplos setores do PT cometem este erro, consciente ou inconscientemente”.

A reflexão é do secretário executivo do Foro de São Paulo, Valter Pomar, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, onde defende que é preciso derrotar o discurso segundo o qual nosso objetivo é ser um “país de classe média”, “assim como esta besteira sociológica e política segundo a qual nos dez anos de governo petista milhões ‘ascenderam para a classe média’. Os que melhoraram de vida, desde 2003, são na esmagadora maioria classe trabalhadora. E devem ser vistos assim, chamados por este nome e convocados a se organizar, pensar e agir como tal”.

Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo – USP e mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes, Lazer e Turismo da prefeitura municipal de Campinas de 2001 a 2004. É membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e secretário-executivo do Foro de São Paulo.

Confira a entrevista.

De forma geral, como o senhor avalia os dez anos do PT diante do governo federal?

Eu faço uma avaliação positiva, porém crítica. Positiva, porque estamos melhor – política, econômica e socialmente – do que estávamos sob o governo FHC e porque estamos muito melhor do que estaríamos se Serra ou Alckmin tivessem vencido alguma das três últimas eleições presidenciais. Crítica, porque ainda não conseguimos superar a herança neoliberal, porque não conseguimos fazer as reformas estruturais necessárias para superar o desenvolvimentismo conservador e, principalmente, porque não estamos conseguindo implementar algumas tarefas estratégicas, a saber: a reforma política no sentido amplo da palavra, a democratização da comunicação social, a politização e organização dos setores que ascenderam socialmente durante estes dez anos, bem como das novas gerações. Tarefas nas quais o governo joga algum papel, mas que no essencial são tarefas que devem ser conduzidas pelo Partido.

O que os dez anos de governo federal encabeçado pelo PT tiveram de governo democrático-popular?

A expressão democrático-popular pode ter vários significados. Se for no sentido empregado pelas resoluções do PT nos anos 1980, a resposta é: nada. Pois governo democrático-popular, no sentido empregado por aquelas resoluções, seria aquele governo que faz reformas estruturais no país, reformas de sentido antilatifundiário, antimonopolista, anti-imperialista. Se adotarmos um ponto de vista mais amplo, segundo o qual governo democrático-popular seria aquele que adota um modelo de desenvolvimento oposto ao desenvolvimentismo conservador que vigorou no Brasil entre 1930 e 1980, poderíamos dizer que nestes dez anos ensaiamos algo nesse sentido. Mas acho que o mais adequado é reconhecer que nestes dez anos fizemos um governo de centro-esquerda, no interior do qual trabalhamos para superar a herança neoliberal.

Quais os riscos de se cair em um esquerdismo a partir das diferenças políticas existentes dentro do PT e dentro da esquerda política brasileira de forma geral?

O esquerdismo é residual no PT, mas está presente em outros setores da esquerda brasileira. De maneira muito simplificada, o esquerdismo consiste em considerar o governo Lula e/ou o Partido dos Trabalhadores como inimigo principal ou, pelo menos, como aliado do inimigo principal, como aliado do imperialismo e do grande capital. Trata-se de um equívoco similar ao que foi cometido pelos comunistas frente ao segundo governo de Vargas. Há formas mitigadas de esquerdismo, por exemplo, entre setores da intelectualidade brasileira, que organizam sua análise da realidade a partir de uma premissa falsa, a saber: a de que o PT seria a força hegemônica na sociedade brasileira, confundindo governo com poder e, por tabela, atribuindo ao Partido dos Trabalhadores a responsabilidade por uma situação que decorre da hegemonia realmente existente. É bom lembrar sempre: ainda vivemos num país marcado pela herança neoliberal, hegemonizado pelo grande capital e pelas forças de centro-direita. Isso não quer dizer, obviamente, que o PT não possa e não deva ser criticado, especialmente quanto à maneira como ele busca superar a herança neoliberal e a hegemonia da centro-direita e do grande capital.

Em que medida o governismo teve espaço nesses dez anos de esquerda no poder no Brasil?

O governismo ainda é dominante no PT. Muita gente no Partido ainda não aprendeu a diferenciar o ser governo do ser governista. É óbvio que o PT deve defender, sustentar, apoiar seus governos. Mas o papel do PT vai além disso. Os governos de coalizão, como foram os governos Lula e como é o governo Dilma, são governos em disputa. Cabe ao PT disputar seus governos, o que supõe perceber as diferenças entre governo e Partido, evitando o governismo que confunde um e outro. E cabe ao PT disputar a sociedade, para acumular forças em favor de seu projeto programático, estratégico, histórico. Se não fizermos isso, vamos acabar transformando o programa mínimo de um governo de coalizão, no programa máximo do partido. Infelizmente, amplos setores do PT cometem esse erro, consciente ou inconscientemente.

Como, nesses dez anos, a esquerda petista reagiu diante da crise do socialismo soviético e da social-democracia?

A crise do socialismo soviético foi espetacular, aguda e é um fenômeno dos anos 1980, início dos anos 1990. Já a crise da social-democracia é um processo mais lento, arrastado, crônico, que vem dos anos 1980 e se estende até hoje, haja vista o desmonte do chamado Estado de bem-estar social europeu. As duas crises foram acompanhadas pela crise do desenvolvimentismo e do nacionalismo revolucionário. E, é claro, pela ofensiva neoliberal. O resultado disso tudo foi colocar a esquerda mundial num ambiente de defensiva estratégica. Todos fomos obrigados a dar dois passos atrás. Mas alguns foram além disso, e mudaram suas posições: comunistas viraram social-democratas, revolucionários viraram reformistas, social-democratas transformaram-se em social-liberais, desenvolvimentistas viraram neoliberais, nacionalistas viraram entreguistas. De maneira geral, o PT saiu-se relativamente bem do processo, pois não rompemos os vínculos com a classe trabalhadora, não abjuramos o socialismo e a esquerda, e também por isso conseguimos, nadando contra a corrente, fazer o Partido ampliar sua força eleitoral-institucional. Agora, é evidente que dentro desses marcos houve setores do PT que não apenas mudaram de posição, também mudaram de lado. Alguns, menos relevantes, saíram do PT e passaram a fazer parte do tucanato. Outros permaneceram dentro do Partido, defendendo posições social-liberais e propondo, por exemplo, uma aproximação estratégica com o PSDB. No início do governo Lula, estes setores tiveram muita força, hoje perderam grande parte de sua influência.

Em que consiste o déficit teórico da esquerda em nosso país?

A esquerda mundial, não apenas a brasileira, possui um déficit teórico em três âmbitos principais: na compreensão do capitalismo do século XXI, na análise das experiências socialistas ocorridas no século XX e no debate acerca da estratégia. No caso específico do Brasil, isso se traduz numa baixa compreensão acerca da sociedade brasileira hoje. Prova disso é que as grandes e melhores referências de análise do Brasil seguem sendo nomes como Sérgio Buarque, Caio Prado Jr., Werneck Sodré, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Sem entrar no mérito das contribuições de cada um, é mais do que claro que o Brasil por eles investigado é diferente do atual. E para ser mais preciso: nossa compreensão acerca das classes sociais e da luta de classes no Brasil está totalmente defasada. É em parte por isso que um partido socialista e de trabalhadores, como somos nós do PT, estamos crescentemente hegemonizados por posições desenvolvimentistas. Que são, é bom dizer, muito melhores do que o social-liberalismo. Mas são muito menos do que o PT desejava nos anos 1980 e, sobretudo, são totalmente insuficientes para enfrentar os problemas postos para o país, neste momento de crise do capitalismo mundial.

Como as transformações nas classes sociais brasileiras, principalmente a classe média, contribuem para os novos movimentos da esquerda no país?


A estrutura de classes existente na sociedade brasileira, nos anos 1970, foi revirada três vezes: primeiro pela crise do desenvolvimentismo, depois pelo neoliberalismo e, agora, pelas políticas adotadas nesta década de governos encabeçados pelo PT. A classe trabalhadora não é mais a mesma, assim como os capitalistas não são mais os mesmos. E os setores médios – termo bastante inadequado, que inclui desde trabalhadores de alta renda capazes de assalariar outros trabalhadores, até pequenos proprietários que funcionam num esquema de produção familiar – também sofreram grandes transformações.

Em minha opinião, a esquerda deve atentar para três aspectos. Primeiro, determinar melhor quem é a fração dominante na classe capitalista, ou seja, quem é nosso inimigo principal. Há um pensamento vulgar que identifica esta fração como “os banqueiros”, quando na verdade a fração dominante é financeira, com tentáculos por todos os ramos de atividade. Em segundo lugar, devemos identificar os diferentes setores da classe trabalhadora e determinar quais são os setores cuja organização é especialmente estratégica. Os metalúrgicos foram isso nos anos 1970 e 1980. E agora? Em terceiro lugar, é preciso analisar cada um dos setores que o senso comum designa como classes médias, pois ganhar para nosso lado ou pelo menos neutralizar estes setores é algo decisivo para o sucesso de um projeto democrático, popular e socialista. Tudo isso supõe, é claro, derrotar este discurso segundo o qual nosso objetivo é ser um “país de classe média”, assim como esta besteira sociológica e política segundo a qual nos dez anos de governo petista milhões “ascenderam para a classe média”. Os que melhoraram de vida, desde 2003, são na esmagadora maioria classe trabalhadora. E devem ser vistos assim, chamados por este nome e convocados a se organizar, pensar e agir como tal.

O que o senhor caracteriza como o pensamento de esquerda hoje?

Entendo que há várias esquerdas no Brasil. Do ponto de vista programático, do ponto de vista das ideias, há pelo menos quatro esquerdas. Há uma esquerda social-liberal, que está na esquerda, mas deixando de sê-lo. E há também uma esquerda desenvolvimentista, uma esquerda social-democrata e uma esquerda socialista. Esta última é minoritária, está espalhada em várias organizações distintas e, além disso, sofre grande influência do esquerdismo.

Nosso desafio é voltar a ter uma esquerda socialista de massas, que seja capaz de vincular três movimentos: as tradições populares contra o desenvolvimentismo conservador, a luta das classes trabalhadoras por políticas públicas que melhorem a vida do povo aqui e agora, e a luta socialista contra o capitalismo.

A aposta que fazemos é que, dado seus vínculos com a classe trabalhadora, o petismo já foi e ainda é quem tem melhores condições de ser esta esquerda socialista de massas, à condição de que derrotemos as posições social-liberais e que enquadremos as posições desenvolvimentistas e social-democratas existentes no interior do Partido. Se não tivermos êxito, voltaremos à condição do período pré-surgimento do PT, em que a esquerda socialista era uma força minoritária, oscilando entre o sectarismo e o adesismo.

Que tipo de reformas estruturais devem ser realizadas para que se supere o desenvolvimentismo conservador?

O desenvolvimentismo conservador produz um crescimento econômico marcado por três características principais: a dependência externa, a desigualdade social e o conservadorismo político. E sua base social atual está na aliança entre as distintas frações do empresariado capitalista, com parcelas dos setores médios e dos trabalhadores assalariados. O que chamamos de reformas estruturais? Exatamente aquelas ações que afetam, atingem, desfazem o poder econômico, político e ideológico do empresariado capitalista; e que, pelo contrário, fortalecem os setores sociais dominados. Por exemplo, reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana, políticas sociais universalizantes, quebra dos grandes monopólios privados, democratização da comunicação social, reforma do Estado, inclusive reforma política, integração regional etc.

Como definir a esquerda política latino-americana? Nossa experiência atual tem mais a aprender com Allende ou com Che Guevara?

A esquerda latinoamericana são várias. O que nos unifica? Por um lado, a luta contra o neoliberalismo, por outro lado a defesa da integração regional. Agora, apesar das diferenças, as esquerdas latino-americanas atuam em marcos históricos distintos daqueles que, em outras épocas, permitiram adotar a insurreição, a guerra popular e a guerra de guerrilhas como vias de tomada do poder. Os processos que estamos vivendo, desde 1998, na América do Sul, principalmente, enfrentam dilemas que já foram vistos noutras situações, por exemplo, durante o governo da Unidade Popular chilena. Claro que atuamos em uma situação histórica distinta daquela existente em 1970-1973.

Porém as questões fundamentais a estudar e debater não se alteraram: a composição e o programa do bloco histórico popular; a combinação entre a presença no aparato de Estado e a construção de um contrapoder, especialmente no caso das Forças Armadas; como lidar com a atitude das classes dominantes, que, frente a ameaças a sua propriedade e a seu poder, quebram a legalidade e empurram o processo em direção a situações de ruptura; a maior ou menor maturidade do capitalismo existente em cada formação social concreta e a resultante possibilidade de tomar medidas socialistas.

A grande novidade, que incide sobre os termos da equação acima resumidos, é a constituição, entre 1998 e 2013, de uma correlação de forças na América Latina que permite limitar a ingerência externa. Enquanto exista esta situação, será possível especular teórica e praticamente acerca de uma via de tomada do poder que, ainda que também revolucionária, seja diferente da insurreição e da guerra popular. Claro que temos muito a aprender com Che. E também com Lenin, Mao etc. Mas esse aprendizado será mais útil, se entendermos que operamos numa situação histórica que tem mais parentesco com a vivida pela Unidade Popular chilena do que com a vivida pela Cuba de 1953-1959.

O que deveria ser levado em conta ao se fazer um balanço das experiências socialistas, social-democratas e nacional-desenvolvimentistas do século XX?

Tem muita coisa a levar em conta, mas o fundamental é perceber como o capitalismo se adaptou, cercou, sufocou, deformou e limitou cada uma destas experiências. Dizendo de outra maneira: para nós que defendemos superar o capitalismo, é preciso descobrir como o vírus sofre mutações que o fazem sobreviver. Claro que o problema se coloca de maneiras diferentes. O nacional-desenvolvimentismo não era anticapitalista; algumas de suas variantes buscavam ser anti-imperialistas. Já a social-democracia era originalmente anticapitalista, assim como o comunismo soviético. Ambos tiveram que construir modus vivendi com o capitalismo, sendo que no caso do comunismo soviético havia o propósito de conviver para superar em definitivo o capitalismo.

Mas o que ocorreu ao final das contas foi o contrário: o capitalismo sobreviveu. A pergunta é: por quais motivos? E o que pode ser feito para que novas tentativas de construção do socialismo não incorram no mesmo desfecho? Um bom começo é evitar o discurso da irreversibilidade dos processos revolucionários. E, principalmente, recuperar o modo de pensar clássico do marxismo acerca do capitalismo como processo contraditório, cabendo a nós desenvolver estas contradições, buscando no centro da própria engrenagem a contramola que resiste e supera. Esta “mola” é a luta política e social da classe trabalhadora: só ela permite um desenvolvimento capaz de superar, seja o neoliberalismo, seja o desenvolvimentismo conservador, seja o capitalismo.

Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Eu acrescentaria que estamos num momento fantástico, tanto da história do Brasil quanto da história regional e mundial. A crise do capitalismo, o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, o deslocamento geopolítico em direção à Ásia, criaram uma instabilidade muito perigosa, mas ao mesmo tempo é esta instabilidade que nos permite dizer que o jogo está sendo jogado, que as alternativas estão sobre a mesa, que muito pode acontecer, inclusive nada como diria o Barão, e que as soluções estão sendo construídas aqui e agora, pelo que estamos fazendo dentro de cada país e por aquilo que cada Estado está fazendo na arena internacional. Nosso desafio como esquerda brasileira, especialmente o desafio dos petistas, é estar à altura destas circunstâncias. E fazer o que precisa ser feito, não apenas para que o povo viva melhor, não apenas para superar o neoliberalismo, não apenas para superar o desenvolvimentismo conservador, mas também para recolocar o socialismo como alternativa prática para os problemas da maioria do povo. Se nós do PT não conseguirmos isto, teremos que esperar muitas décadas para que se abra uma nova janela histórica. Agora, para conseguir isso será preciso superar uma tradição da história brasileira: a de mudar conciliando e preservando grande parte das relações sociais do passado. Sem esquerdismo, sem voluntarismo, sem desconsiderar a correlação de forças, mas também sem cair nesta desastrosa tese segundo a qual sempre é melhor um mau acordo do que uma boa briga.


IHU On-Line

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